Campos de refugiados: de assentamentos temporários a cidades permanentes

Segundo dados veiculados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), mais de 70 milhões de pessoas têm sido forçadas à abandonar suas casas ao longo dos últimos anos devido a conflitos, violência e catástrofes naturais, sendo que 26 milhões destas são consideradas refugiados de guerra. Em um contexto tão crítico, não podemos apenas continuar pensando em números. É preciso considerar, em primeiro lugar, que cada unidade desta conta representa uma vida – seres humanos que precisam de ajuda. Portanto, chegou a hora de superarmos este permanente estado de perplexidade e partirmos para a ação, isso porque situações como esta não se resolvem da noite para o dia – elas podem durar uma vida inteira. Na atual conjuntura, campos de refugiados não mais podem ser vistos apenas como estruturas temporárias, e é exatamente ai que os arquitetos podem fazer a diferença.

Quando lidamos com crises humanitárias provocadas por conflitos armados, não estamos falando de um fenômeno passageiro. Trata-se, na maioria dos casos, de um caminho sem volta. De fato, segundo o próprio Comissariado das Nações Unidas do Quênia, de todas aquelas pessoas que se veem forçadas a abandonar os seus países de origem ––e têm a felicidade de encontrar um lugar para viver––, “a maioria delas passam mais de 16 anos vivendo em estruturas temporárias.”

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MOGADISHU,SOMALIA - 30 de Abril de 2013. Imagem via Shutterstock/ By Sadik Gulec

Em um artigo publicado a mais de sete anos atrás pelo ArchDaily, no Dia Mundial dos Refugiados, a autora Ana Asensio já chamava a atenção para um urgente fenômeno: um campo de refugiados é toda uma cidade em si. Uma cidade temporária, em teoria. Uma cidade efêmera, cujos habitantes vão sendo colocados ali como peças de um quebra-cabeça. Uma cidade em estado de espera, aguardando uma arquitetura que parece ignorar a sua incontestável existência.

Encarados como estruturas emergenciais temporárias, conforme estabelecido por um conjunto de regras e normas definidas pela Organização das Nações Unidas, assentamentos de acolhida à refugiados têm como único objetivo: acomodar, por um breve período de tempo, pessoas e comunidades em situação de emergência. Ainda que extremamente necessárias e funcionais, estruturas temporárias como acampamentos e campos de refugiados nem sempre assumem apenas um caráter provisório. Isso se deve ao fato que, para um número significativo de pessoas deslocadas forçosamente de seus contextos, o acampamento é a primeira e única forma de moradia que eles conhecem. Ao encarar deliberadamente esta situação como temporária, e focando apenas na criação de infra-estruturas básicas e de sobrevivência, abrigos temporários para refugiados falham enormemente em proporcionar um ambiente apto às reais necessidades destas comunidades.

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Vista aérea do campo de refugiados Sírios em Kilis, Turquia. Imagem via Shutterstock/ By savas_bozkaya

A precariedade passa a ser a regra e não a excessão. Espaços concebidos como temporários assumem lamentavelmente uma condição de semi-permanência. A partir deste primeiro momento, uma série de dificuldades começam a aparecer, agravadas ainda mais por condições climáticas rigorosas e falta d'água e saneamento básico por exemplo. Pouco a pouco estas estruturas vão se transformando em favelas e acabam esquecidas ou completamente abandonadas. Densamente ocupados e insalubres, muito por causa do confinamento que lhes é imposto, esses acampamentos falham miseravelmente em proporcionar condições mínimas de saúde e segurança. 

A pressão só aumenta, tanto sobre estas comunidades quanto sobre a infra-estrutura dos países anfitriões. Estruturas temporárias se transformam em uma enorme desvantagem, quando as pessoas que ali vivem o fazem de forma permanente. Devido à sua natureza política, estas comunidades acabam sufocadas por uma série de regras rígidas, as quais impedem que seus moradores caminhem com as suas próprias pernas, gerando exclusão e consequentemente, violência. Com medo das consequências que a própria incapacidade de lidar de forma saudável com estas comunidades provoca, muitos países fecham as suas portas e se negam a receber refugiados ou imigrantes. Acontece que, a transitoriedade imposta sobre estruturas que estão muito distantes de serem temporárias, criam mais problemas do que soluções. Barracas e tendas, galpões e áreas de isolamento, todas elas deixam de ser estruturas sustentáveis a longo prazo, provocando uma deterioração constante da condição humana.

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Sanliurfa, Turquia, 23 de Setembro de 2015. General view from Akcakale Refugee Camp. Image via Shutterstock/ By Tolga Sezgin

Continue lendo para saber mais sobre os maiores e mais antigos campos de refugiados do mundo. Cidades dinâmicas, flexíveis e em constante evolução, alguns destes espaços foram moldados para atender as necessidades básicas de seus habitantes, estruturas exemplares––mas nem sempre––que buscam proporcionar qualidade de vida e inclusão social.

Complexo de refugiados de Dadaab e o importante papel dos líderes comunitários

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Daddab. Imagem via Shutterstock/ By hikrcn

Inicialmente estabelecido como um assentamento temporário para refugiados da guerra civil que devastou a Somália em 1991, Dadaab, no Quênia, cresceu e se expandiu rapidamente para se transformar em um enorme complexo, altamente composto por cinco grandes comunidades: Dagahaley, Hagadera, Ifo, e mais recentemente Ifo II e Kambioos. Considerada a terceira maior cidade do país, depois de Nairóbi e Mombaça, Dadaab cresceu de forma integrada especialmente devido às políticas impostas pelo governo do Quênia, as quais impedem que os refugiados se estabeleçam fora das áreas determinadas a priori. O complexo ou cidade de Dadaab conta hoje com uma população de mais de 200 mil habitantes, entre refugiados e pessoas em asilo político. Como já se passaram mais de 20 anos deste a sua fundação, para muitos de seus habitantes, Dadaab sempre foi––e provavelmente sempre será––a sua casa.

Dadaab pode ser considerada um ótimo exemplo de autogestão. A comunidade é representada legalmente por voluntários ou líderes eleitos democraticamente por todos os moradores, os quais são responsáveis por coordenar todas as atividades dos acampamentos, desde as políticas de saneamento básico até a segurança. Esta abordagem surgiu de uma necessidade no momento em que as tropas da ONU se retiraram de Dadaab em 2011, afugentadas pelo seqüestro relâmpago de alguns de seus representantes. Atualmente, o complexo de Dadaab é o maior campo de refugiados do mundo, uma cidade autogerida onde os refugiados dirigem as suas próprias empresas assim como organizam a prestação de serviços básicos para a comunidade em geral. Nesta simbiose com o país que os acolheu, Dadaab é uma comunidade que contribui enormemente com o governo local, assim como se beneficia de sua autonomia e autogestão.

Assentamento em Kalobeyei e seu plano de desenvolvimento sócio-econômico integrado 

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Assentamento em Kalobeyei. Imagem Cortesia de UNHCR Kenya

O Assentamento em Kalobeyei no norte do Quênia foi estabelecido em 2015 em decorrência da guerra civil que estalou no sul do Sudão em 2013. O campo de refugiados de Kalobeyei está inserido no projeto de expansão do já estabelecido Assentamento de Refugiados de Kakuma. No ano de 2015, Kakuma contava com uma população registrada de mais de 180 mil pessoas, embora tenha sido inicialmente concebido para acolher uma comunidade de até 70 mil habitantes. Neste contexto, ajudas humanitárias chegaram das mais variadas formas. O escritório de Shigeru Ban, por exemplo, foi responsável pelo projeto de 12,000 abrigos para a população de Kalobeyei, o qual foi desenvolvido em parceria com o Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas (UN-Habitat). Focando no projeto de um abrigo sustentável e que praticamente prescinde de supervisão técnica, utilizando apenas materiais locais e de fácil manutenção, o arquiteto japonês desenvolveu uma série de oficinas com as principais lideranças comunitárias para dar início ao projeto.

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Cortesia de ACNUR

Respaldando-se em uma abordagem que procura promover a auto-suficiência da comunidade e proporcionar melhores oportunidades de subsistência assim como prestação de serviços, o Plano Integrado de Desenvolvimento Sócio-Económico de Kalobeyei, ou KISEDP, é um projeto pensado a médio-longo prazo (2016-2030), o qual foi estabelecido já em 2018.

Com objetivos como minimizar a dependência de ajudas humanitárias e promover soluções duradouras, o plano integrado procura estabelecer o assentamento como uma estrutura permanente, como a cidade que ela virá a ser. Uma abordagem que pretende promover o desenvolvimento econômico, facilita a colaboração entre a comunidade local e os entes públicos, empresários e organizações não governamentais, criando melhores condições para o crescimento econômico, a geração de empregos e finalmente, inclusão social e qualidade de vida. De fato, “tanto os refugiados quanto os governos locais apenas têm a se beneficiar dos investimentos em infra-estrutura básica e acesso a serviços sociais; quanto mais oportunidades os imigrantes tiverem, maior os benefícios que eles podem gerar para o país.”

Assentamento de Zaatari e a sua Urbanização Orgânica

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Vista aérea do Campo de Refugiados de Zaatari. Imagem Cortesia de Wikimedia

Considerado um dos maiores campos de refugiados do mundo, Zaatari, na Jordânia, é um ótimo exemplo de como as pessoas podem deixar sua marca ao apropriar-se do espaço que habitam. Em um artigo do New York Times, Michael Kimmelman observa que “Zaatari está se transformando em uma cidade informal a um ritmo difícil de acompanhar com os olhos: uma metrópole instantânea e auto-construída que já conta com mais de 85.000 habitantes. Uma lógica que repete aquilo que já conhecemos: bairros, gentrificação, e uma economia em crescimento que, guardadas as devidas proporções, está se estabelecendo como uma cidade formal de fato, ainda que a maioria dos refugiados ainda mantém a esperança de um dia poder voltar para casa.”

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Campo de refugiados Sírios na Turquia. Imagem via Shutterstock/ by Thomas Koch

Acolhendo maioritariamente famílias sírias e iraquianas, Zaatari é um exemplo de desenvolvimento orgânico irrefreável. Na verdade, tudo aqui parece se suceder de forma natural, orientada pela emergência das necessidades mais urgentes, uma busca espontânea por uma condição mínima de sobrevivência. Embora grande parte do assentamento siga uma estrutura ortogonal, o crescimento espontâneo está se espalhando em todas as direções e formas possíveis. “Nas partes mais antigas de Zaatari, as ruas já estão até asfaltadas, algumas contam com postes de iluminação, casas mais elaboradas feitas de blocos de concreto e contêineres velhos coexistem com tendas e abrigos temporários, algumas contam com pátios internos, banheiros privativos e até sistemas de esgoto” explica Kimmelman. Evoluindo para um ecossistema complexo, mais como uma cidade do que como um assentamento temporário, Zaatari é um território dinâmico, com casas construídas com tijolo e pedra, articuladas ao redor de espaços públicos e privados e aonde começam a surgir negócios e lojas.

Outros assentamentos menos precários também tem sido organizados em outras partes da Jordânia e na Turquia, alguns até dotados de todo tipo de infra-estruturas públicas. Concebidos segundo códigos e normas de ocupação rígidas, muito para evitar condições semelhantes como as de Zaatari. O Campo de Azraq, por exemplo, embora localizado no meio do nada, está sendo construído para acolher até 100 mil refugiados da Síria, e já conta atualmente com mais de 10 mil habitantes registrados.

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Sobre este autor
Cita: Harrouk, Christele. "Campos de refugiados: de assentamentos temporários a cidades permanentes" [Refugee Camps: From Temporary Settlements to Permanent Dwellings] 07 Jun 2020. ArchDaily Brasil. (Trad. Libardoni, Vinicius) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/940754/campos-de-refugiados-de-assentamentos-temporarios-a-cidades-permanentes> ISSN 0719-8906

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